quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Eugênio & Júlia




“Esse é o teatro: um ritual vazio e ineficaz que enchemos com nossos ”porquês”, com nossas necessidades pessoais. Que em alguns países do planeta é celebrado na indiferença e que, em outros, pode custar a vida de quem faz.”
Eugênio Barba



Dezoito anos se passaram desde a última visita de Eugênio Barba e Júlia Varley ao Theatro José de Alencar, quando O Castelo de Holstebro marcou a vida de muitos lá no meu Ceará. Muito tempo convivi com uma certa culpa por, na ocasião, não ter atentado para a importância daquele encontro, adiando esta emoção e aprendizado. Felizmente a vida permitiu reparar o vacilo de outrora.

Enchi-me de vontade de partilhar o rebuliço das minhas impressões e desejos. Algumas tentativas frustradas por uma autocensura doentia. Pudores que denunciam uma vaidade maior do eu gostaria. Ora, dane-se!

Enfim os fatos conforme as minhas lembranças e entendimento.

Por volta das 07:00h do último 25 de novembro de 2009, a primeira das grandes filas começava a se formar no portão do anexo. Atendendo ao critério de ordem de chegada e doação de um livro, misturavam-se gerações de artistas de vários setores e outros profissionais. Eugênio Barba desperta a curiosidade não apenas de gente de teatro. A nós somavam-se escritores, cineastas, bailarinos, produtores, jornalistas e outras gentes.

Como é próprio dos grandes mestres, Eugênio surge simples, tranqüilo. Se posta entre nós real e possível. Contou-nos um tanto de si e do Odin Teatret. Trouxe à reflexão o fato de o teatro render-se à indústria de diversões. Chamou-nos (aos atores) à responsabilidade de nos afirmarmos como artistas com características tão particulares quanto um poeta ou um pintor.

Pus-me a “matutar” sobre auto-expressão e liberdade, tão impossível de desenvolver e conquistar senão pela entrega absoluta a uma prática rigorosa e constante. Dureza. Mas a postura do mestre é encorajadora. Seguimos com vídeos antigos onde um Eugênio de cabelos ainda negros treina seus atores. Corpos modelados pelo ofício em exercícios que exigem tudo. Força, ritmo, atenção, perspicácia, prontidão. Do largo ao mínimo, do equilíbrio ao descompasso, da precisão à incerteza. Acrobacias e outros movimentos e ações que evoluem até à exaustão. Depois disso, vertigem. O ator pronto para enfrentar e proporcionar ininterruptas surpresas.

Finalmente em “carne viva” no palco do Theatro José de Alencar, com a platéia também dentro da “caixa mágica”, Júlia Varley invade a cena e muito generosamente escancara para nós os seus caminhos para a criação. Júlia em exercício é o próprio método de Barba, claro, essencial. Muitas vezes talvez nos bastasse vê-la para compreender. Carregada, sobretudo de sua própria história, sua biografia como ele reforça sempre, revela o poder da técnica cujo grande valor está em favorecer a autodescoberta, o reconhecimento e ampliação dos próprios recursos, potencializando-os de modo a se fazer mágica com isto. O corpo e a voz investigados com sabedoria, calma. Parece não ter limites.

Nosso aplauso interrompido por Eugênio. Não estava ali na ânsia se ser aceito, reverenciado. Depois, penso que temos aplicado o aplauso muito para tudo e qualquer coisa, de modo que este acaba desmerecendo ser usado em certas ocasiões.

À noite, uma platéia alegre e conversadeira se “organizava” para conhecer O Eco do Silêncio. Um espetáculo de aula onde Júlia se expõe tão corajosamente que não tenho como não me emocionar de novo enquanto escrevo. Não é raro ver pessoas usarem de uma força até então desconhecida para superar situações em que sofrem limitações sensoriais ou motoras. Para nós, no entanto, tem especial significado conhecer os caminhos da superação de uma atriz cuja voz se perde. Não aceitar o silêncio como impedimento e sim como a chave para finalmente descobrir o ruído essencial, necessário e imprevisível. Seja em fala, canto ou outros sons. Não apenas uma recuperação via tratamentos médicos. O que se revela naquele Eco é uma reconstrução só possível quando atua uma inteligência, sensibilidade e capacidade de criação movidas por uma perseverança para poucos destinada. E o que é hoje a capacidade vocal daquela mulher? A fala vacilante encontra canais tão surpreendentes! Foi como ouvir pela primeira vez. Para mim, por causa de Júlia Varley, aquela primeira noite foi o grande impacto de todo o encontro.

No dia seguinte, atravessar o centrão rumo ao TJA. Mais fila, mais gente, mais livros, mais alegria. Júlia, muito “na sua”, costurando uns adereços e figurino num canto do palco, enquanto Eugênio nos mostra, através de vídeos, experiências teatrais de alguns lugares do mundo. Não espetáculos prontos. A caminhada. O método. Como os mestres transmitem conhecimentos para novas gerações. Severidade e generosidade na busca da excelência. Até que Júlia larga os paninhos, surpreendida por Eugênio que propõe a ela nos mostrar a criação de uma partitura nova, com estímulos ainda desconhecidos. Tércia Montenegro emprestou um livro e Eugênio escolheu um texto qualquer (poema lindo, não sei de quem). Júlia começa do nada. Aquele momento que todos nós conhecemos e que nos apavora. E agora, o que fazer? Ela faz. Uma, duas, três, algumas vezes. Até que todo o texto era sabido inclusive pelo corpo cuja partitura estava esboçada. Eugênio se junta a ela, propondo coisas, incorporando erros e acidentes (sobre isto alguém tinha perguntado no dia anterior).

O grande barato aí era justamente ver Júlia do começo, em sua fragilidade, explorando o desconhecido. Vê-la chegar com todos os seus clichês até que pudesse libertar-se deles para então nos surpreender com gestos e sons e emoções não imaginadas. Manhã feliz, encerrada com almoço ali mesmo na Cantina do Muriçoca, com os mestres chupando manga como qualquer mortal.

Terceiro dia. Muito mais barulho, desta vez no corredor de acesso às salas de ensaio, pois o palco principal estava sendo preparado para As Borboletas De Dona Música. A Sala Nadir Sabóia é o cenário da última aula.

Instigante contador de histórias, Eugênio revela todos os planos que antecederam sua encenação de Hamlet. Os recursos técnicos imaginados, os mais arrojados e caros para, por exemplo, destacar o Fantasma da obra de Shakspeare, conforme o valor que lhe atribui. A realidade, porém, apresenta possibilidades financeiras bem aquém da imaginação (felizmente sem limites) do grande encenador. Este teve de recorrer ao bom e velho “teatro pobre”, diz brincando. Mas, ele pode. Naquela manhã tivemos o Hamlet dos sonhos de Barba, apresentado por sua narrativa apaixonante. E também o vídeo do Hamlet realizado, igualmente genial, ao ar livre, com dezenas de atores de vários lugares do mundo, num ritual cuja força é extraída da combinação cuidadosa e coerente das expressões de povos diversos. E isto, pelas mãos de Barba, é muito mais que um curioso elemento estético. Algo inusitado, Barba leva à cena um Hamlet anterior ao de Shakespeare. Hur-Hamlet, baseado nos escritos de Saxo Grammaticus.

Enquanto isso Júlia cumpria o seu ritual de ficar arrumando coisinhas para a apresentação da noite. Recortava papeizinhos e costurava pequenos pedaços de renda. Adoro quando um ator dá conta de todos os seus elementos de cena. Apropriação. O silêncio de Barba para mais uma das incríveis demonstrações da atriz. Desde os seus pés aos longos cabelos, inteira, vibrante, minuciosa, dominando a sua arte. Não com a arrogância de quem pensa que os outros não entendem, não podem, não conseguem. Júlia Varley parece um convite, pois quanto mais apreciamos, mais vontade nos dá de fazer.

Perguntas e perguntas, dentre as quais me lembro particularmente de uma garota linda, super articulada e eu diria até bem fundamentada, mas, que nos causou a impressão de questionar as intenções de gente como Barba e Peter Brook, como se explorassem indevidamente as culturas alheias pelo prazer de expor o exótico. Eu disse apenas que a pergunta “nos causou a impressão” pois, afinal, nem conheço a garota para julgá-la. Na verdade, graças a ela tivemos a oportunidade de ouvir o mestre dizer da anatomia do ator. O Homem seja lá em que cultura ou região, seus medos, seus dons, suas expressões, seus códigos. Tudo nele nos interessa. Todos os homens, de algum modo, habitam o corpo do ator. Lembrando que aqui as idéias se organizam conforme meu próprio entendimento. Sobretudo, foi comovente a defesa que Barba fez de Peter Brook, dizendo o que nunca é demais ouvir num mundo lamentavelmente tão desinteressado da ética. E nos despedimos muito emocionados. Desta vez nem ele conseguiu conter o aplauso legítimo, grave, volumoso e duradouro.

Mais tarde, as Noites Brancas de Dostoievski pelas mariposas de Dona Júlia, quer dizer, As Borboletas De Dona Música. Num figurino deslumbrante, uma personagem de longos cabelos brancos, homenagem explícita à avó de Eugênio, que ele descreve tão carinhosamente em A Canoa de Papel. Os desejos e comandos de um diretor, a personalidade forte e os modos próprios de uma atriz. Entre resistências e sinais da mais absoluta confiança mútua, ergue-se um teatro tão poderoso e raro e belo. E é Fernando Pessoa quem traduz o meu estado: “O que foi que dissestes e que me apavorou? Senti-o tanto que mal vi o que era.” Se bem me lembro.

As Borboletas vêm dos escritos de Júlia e talvez tratem do óbvio mesmo. Aquele lance de um bater de asas aqui causar uma catástrofe do outro lado do mundo. Sobre a ligação entre todas as coisas e a transitoriedade das mesmas. Mas, é o modo como qualquer elemento nas mãos da atriz, um simples pedaço de pano, nos leva a visualizar e acreditar no que ela queira que faz daquele encontro uma experiência que não tem preço. Acho que já dei a maior bandeira de que viajei até o Ceará quase que apenas com o propósito científico de saber mais sobre o Teatro Antropológico e caí de amores por Júlia Varley. Confesso.

No sábado, 28, mais uma disputada conferência de Eugênio (figura inesquecível emoldurada por uma das enormes janelas do foyer) seguida do lançamento da recente edição de A Canoa de Papel.

Mais tarde, dentro do castelo, digo, do teatro, mais precisamente sobre o palco, com Júlia. Ela não vem nas pernas de pau, como há dezoito anos. Nem precisa. Havia toda uma curiosidade, pois pela primeira vez faria o espetáculo em português. Para mim não fez diferença. Não atentei para as palavras propriamente. Não era o que dizia, mas, como. Qualidade. A sonoridade, a musicalidade, o ritmo, as intenções, tudo o que dela emanava. Bem podia a personagem ter saído das histórias de Shakespeare para responder ao célebre dilema: “ser ou não ser, eis a questão”. SER E NÃO SER, a solução. Mais do que em qualquer outro momento, leva às últimas conseqüências a afirmação de Eugênio, de que o espectador não pode adivinhar para onde vai o ator. Nos agarra e prende por todos os sentidos. Seguimos com ela. Até se houvesse perigo. Ininterruptas surpresas. Espantos. Quero conseguir lembrar das imagens do Castelo com a clareza da realidade palpável. Esforço-me, mas, foi como ter sonhado e, sobre aquilo, nada há de dizer melhor que os versos de Pessoa, já citados. Justificadas todas as vezes que Eugênio evocou Antonin Artaud, referindo-se à poesia dos sentidos. Aliás, tratei de reler O Teatro e Seu Duplo, do Artaud, tão logo voltei para casa. E era possível enxergar muito melhor depois de estar com Eugênio e Júlia.

Na verdade penso que, nesses dias todos, em nenhum momento disseram qualquer novidade. Temos encontrado outras gentes, ou lemos nos livros, ou, se estamos atentos ao movimento da vida, sentimos. A diferença está sempre na natureza das criaturas, no que fazem dos seus dons. Seu extraordinário talento, sua capacidade de entrega, sua dedicação a este ofício tão belo e cruel. E saírem pelo mundo espalhando coragem. Pois é o que justifica estarmos ali. Eugênio e Júlia marcam as nossas vidas não só pela oportunidade de beber direto da fonte do Teatro Antropológico e apreciar a sofisticada performance da atriz, resultado de uma vida de treino. Marcam, sobretudo, porque em contato com estas duas potências, somos contaminados por sua alegria, força e boa vontade para seguir caminho. Creio que tomou a todos o desejo de fazer mais e melhor.

Sou eternamente grata à Izabel Gurgel e a toda a equipe do Theatro José de Alencar, por acrescentarem à história do nosso teatro cearense, encontro desta natureza. Alegria por desfrutar disso ao lado dos velhos amigos e também pelas novas caras pintando com gás e talento. Boas sementes germinarão. Evoé!

Ceronha Pontes.

Recife-PE, 09-12-2009.