domingo, 5 de setembro de 2010

(Meu artigo publicado hoje no Jornal O POVO, Fortaleza-Ceará. Memórias do Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga.)


RECORTES PERFUMADOS

Dormitórios improvisados nas salas de aula de uma escola. Naquele tempo o colchonete era item obrigatório na bagagem da cada participante. Quem reclamaria o mínimo conforto? Sequer a água gelada dos banheiros coletivos continha a euforia dos desbravadores. Companhias vindas de diversas partes do Nordeste, aventurando-se no que resultaria o encontro de tão grande importância. Era 1993 quando a pequena e encantadora “Guará” iniciava louvável trajetória rumo ao cenário do teatro nacional.

Artistas deslizavam sobre o palco azulejado do teatrinho Raquel de Queiroz, arriscando-se, literalmente, a caírem nos braços da platéia. Minhas pernas ainda recordam a tensão sobre os saltos de Madame Cri-Cri, personagem rodrigueana que defendi no primeiro festival. Inadequações que nunca ameaçaram a vocação do espaço. Havia sincera vontade e fé num futuro que se construiu vitorioso. Vimos emocionados o Raquelzinha ganhar status de cobiçado equipamento e receber o reforço de um Raquelzão para abrigar o púbico crescente.

Até que se concluísse o teatro grande, foi sob lona circense que grandes espetáculos se apresentaram. Com Vau da Sarapalha, por exemplo, do respeitado Piolim, ali chorei de lavar arquibancadas. Sem contar a emoção de estar eu mesma no picadeiro, fosse em espetáculo ou como cerimonialista ao lado de Danilo Pinho quando, dirigidos pelo saudoso Artur Guedes em cenas de clássicos da dramaturgia, surpreendíamos o público quebrando as formalidades da função. Verdade seja dita, função que sempre coube melhor aos verdadeiros anfitriões. Tão bonito ver os próprios jovens da cidade anunciando as atrações!

Impressiona a qualquer visitante aquela cidadezinha oferecer numa mesma rua dois teatros que recebem o melhor da produção nordestina, dialogando com o resto do Brasil e do mundo, formando platéias cada vez mais exigentes. A começar pelos próprios moradores. Ah, porque o povo dali tem a sua história marcada pela encenação de grandes dramas nos anos de antigamente. A cidade teve sempre seus artistas, de modo que não ia engolir atravessado o que não lhes valesse alegria. Como eu gosto disso!

Certa vez flagrei conversa entre uma moradora da cidade e uma atriz. A senhora questionava a qualidade de uma peça recém apresentada. Como se estivesse em cena, bradou minha colega: “Teatro não é pra entender, minha senhora. Teatro é pra sentir. Sentiu? Se a senhora sentiu, então é teatro!” Depois se retirou trágica, enquanto a sábia senhora me sai com mais esta: “Se eu não entender e nem sentir nada, é o quê?”.

De fato um lugar para pensar teatro.

O Festival oferece debates acerca da produção exibida, cursos, encontro de pesquisadores e outros mecanismos de formação. Oh, não creiam que se limite a pretensões intelectualóides! Ali, grupos estabelecem laços, cruzam experiências, investigam, reinventam incansavelmente. Enquanto o Festival, driblando inevitáveis dificuldades, segue divertindo e evoluindo por todo o Maciço.

São memórias para um livro inteiro. Num artigo breve, caiba necessariamente minha gratidão por tudo que aprendi ali, pela carinhosa acolhida às minhas criações. E que não se constitui de elogios infrutíferos, mas esclarecimentos fundamentais para nosso desenvolvimento.

Cearense, hoje radicada no Recife, depois de breve pouso em Foz do Iguaçu-PR, percebo o quanto o Festival foi orgulhosamente apropriado por artistas de todo o Nordeste, despertando interesse e respeito Brasil afora. Guaramiranga me permitiu estar agora inserida e produtiva no cenário pernambucano. Foi em Guará, por ocasião da exibição de “minha” Camille Claudel, que me aproximei irreversivelmente da cena do Recife, através de artistas pelos quais seria acolhida no Coletivo Angu de Teatro, que por sua vez viu sua produção ganhar o mundo a partir do Festival, quando apresentou o inesquecível Angu de Sangue. Este ano, com renovada alegria, nós do Coletivo voltamos com Rasif - mar que arrebenta, da obra de Marcelino Freire.

Natural que espetáculos e artistas marquem a memória do público. À platéia, a magia. Porém, a “mágica” se deve muito a todo um bando de gente que concebeu o Festival e luta continuamente para nos reunir naquele recanto privilegiado do Maciço de Baturité. É preciso lembrar ao público esta gente ousada que atua nos bastidores. Que defendeu e afirmou a Cultura como meio eficaz de desenvolvimento econômico daquela região. Oh, não me tomem por muito conhecedora das ações políticas necessárias à manutenção do Festival. Não sei, apenas intuo o “balé” de uma produção que joga combinando as melhores cartas, acomodando idéias e interesses de modo a termos em Guaramiranga, espaço tão favorável à evolução e difusão de nossa arte. E penso que em vez de injustiçados, sentem-se todos os envolvidos representados por Nilde Ferreira, a quem eu não poderia deixar de citar.

Salve Guará!

Para ver no jornal: http://opovo.uol.com.br/app/opovo/vida-e-arte/2010/09/04/internaimpressavidaearte,2038199/recortes-perfumados.shtml

CERONHA PONTES

Recife-PE, 05 de Setembro de 2010