terça-feira, 24 de abril de 2012

Hitler não comia tapioca



Na     minúscula     varanda    ,     arriscando-se     numa     instável     cadeira     de     plástico     que        insiste     em        apoiar     apenas     nas     pernas     de     trás    ,     de     modo     a     desfrutar     de           débil      balanço    ,     impulsionado     pelos     pés     sujos     de     areia    ,     que     enfrentam     a     proteção     de     madeira     mal     coberta     por     desgastado     verniz    ,      .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . 
A narrativa se alonga no vazio de sentido. O sentido que veio buscar. Mas, o quê, nestas águas, lhe atenuaria rancores longamente cultivados?
"Tão perto, as ondas!", atenta. A paisagem fora redesenhada desde a última vez.
"E se ficar aqui, parada, esperando o mar raivoso engolir também este refúgio"? Demora-se na consideração. Discreto prazer. 
Surpreendem-na as luzes do vilarejo. Quase dezoito horas. 
"Maldito progresso! Se duvidar esta porra já tem até Wi-Fi". Rosna.
Abandonadas sobre as suas pernas nuas as Bocas do Tempo, do velho "amigo" Galeano, companheiro tão inseparável quanto aquele que dorme a uns poucos passos.
Sob o artifício da claridade, aos óculos suspensos por uma perna torturada entre os seus dentes, a legítima serventia. Gosta de tratar livros muito íntimos feito fossem os Minutos de Sabedoria que a Avó adora. Qualquer página(!): 

A PESTE


O barco deslizava para o sul, no mar sereno, ao longo da costa sueca.
Era uma esplêndida manhã de verão. Os passageiros, sentados na coberta, desfrutavam do sol e da brisa suave, enquanto esperavam a hora do café da manhã.
De repente, uma moça correu até a balaustrada e vomitou.
Então, a senhora que estava ao seu lado fez a mesma coisa. Em seguida, dois homens se levantaram e as imitaram. E, um atrás do outro, foram vomitando todos os passageiros dos assentos da proa.
Os da popa riam daquele espetáculo ridículo: mas alguns não demoraram a enfiar os dedos na garganta, inclinando-se sobre o mar calmo, e outros os seguiram.
Ninguém conseguia não vomitar.
Victor Klemperer estava num dos últimos assentos. Para se defender da vomitadeira geral, concentrava-se pensando no seu próximo café da manhã: o café com creme, a geleia de laranja...
E chegou a vez dos que estavam atrás dele. Todos vomitaram. E ele também.
Klemperer esqueceu-se desta história. Ela voltou à sua memória alguns anos depois, na Alemanha, quando a ascensão de Hitler ia se tornando irrefreável.

Ah, Galeano tem um tal poder de lhe conferir às angústias a devida estatura! Recompõe-se.
"Acorda, meu bem, as frigideiras estão tinindo na vila. Coalho com doce de leite, ora dane-se. E tu"?
"Coco e coalho", responde sonolento, crente tratar-se de uma opção frugal.

Ceronha Pontes
Maracaípe, 18 de abril de 2012

P.S.: "Hitler não comia tapioca", concluiria mais tarde.



Um comentário:

  1. Ficou lindo esse duo Galeano e Ceronha, só que essa dança de palavras no alto mar realmente causa ânsia, mas a poesia até que alivia um pouco.

    ResponderExcluir