segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Realidade e realidade outra


1- Acolhendo
Neste momento Elisa, a criatura, me exige acolher o humano, sem moralismos, pudores, regras, julgamentos. Assim seja.

2- Acolhida
Das lonjuras insondáveis, Nikolaj, o único amigo de Frederick. E não só de Frederick. Sua cumplicidade é das coisas mais lindas que já vivinventei¹. Love never dies.

3- Agradecida
Para Nikolaj, porque desconfio que estamos precisando de uma chuva forte em noite longa, a canção que mais escuto nesses dias em que muito me empresto.

C.P.

1- Viviventar. Alguém inventou este verbo antes. Li em algum lugar. Não me lembro onde nem de quem. Já que me empresto tanto,não vi mal em pegar emprestado.



 

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Elisa e eu


Construindo uma nova criatura. Desta vez para o cinema. Seguindo as indicações do diretor André Valença, vou descobrindo o que não está escrito. Chega uma hora que de tanto procurar, a criatura ganha meu corpo e me segue pra todo canto. Vem pra casa comigo, tomamos banho juntas, cozinhamos macarrão, ouvimos música, dançamos, admiramos quadros de Alexandre Cabanel e Félix Vallotton...
Dormir, não dormimos. De madrugada é quando ouço melhor a sua voz. Ela própria me soprando sua história. A que ninguém vê, mas está lá, entrelinhas. Quer saber um pouco?

Estudo e construção de personagem por Ceronha Pontes.

Exercício n° 1 (trecho)

Elisa: 
Herdei de minha tia avó o nome de Elisa. E também esta casa velha onde me escondo da aporrinhação do resto da família. É um tal de querer saber porque que eu num me casei, porque que eu num tive uns pirráia... Oxe! Num tive pirráia, porque pirráia só serve pra deixar a gente encaralhada. Nun quis, num quero.

Exercício n°2 (trecho)

Elisa:
Aí eu me revoltei e falei direto com Deus: olhe, castigada eu tava era quando não sentia. E pronto. Daquela vez em diante eu merecia. Merecia, sabe? Merecia.
Eu num sabia que era tão bom brigar com Deus. Chega eu fiquei mais bonita. Quando foi que me achei bonita mermo? Agora eu termino aqui toda descabelada, toda malamanhada e quando me olho no espelho, me acho é bonita. E digo outra: comecei a ter ideia. Sabe menino pequeno que brinca, inventa as coisa? Então... Eu nunca brinquei. Agora eu brinco, tenho ideia. Outro dia eu fiquei pensando que se botasse um vento, sabe? Me deu vontade dum vento...

Exercício n°3 (na íntegra)

Elisa:
Depois desse movimento aqui em casa eu ando mais disposta, sabe? Vontade de arrumar as coisa, me arrumar também. Só um pouco, né? Outro dia passei até batom. Uma delas deixou por aí um toco de batom, eu passei com o dedo mermo. Já fiquei diferente, achei engraçado. Saí na rua me sentindo a Carmem Miranda com aquela ruma de fruta na cabeça, só por causa dum batonzinho, vê?
Na casa fui bulindo uma coisa aqui, outra ali. Joguei fora uma ruma. O quarto dos fundos era cheio dumas caixavéia. Tia Elisa juntava era troço. Numa delas tinha uns livros velhos, uns cadernos e uma caixinha menor cheia de lápis. Tudo com a ponta grande bem feitinha. Tinha umas página marcada nos livro. Tia Elisa era mulher letrada, visse?Por isso mais que o povo achava ela esquisita. Minha Vó dizia que mulher letrada demais num arruma marido. Pois sim. Tinha uns negócio que se minha mãe lesse, num ia prestar não. Ela descia o cacete mermo em Tia Elisa. E minha Vó? Morria. Uma história comprida de uma tal de Filó¹. Diz que é fada, mas sapata. Bulia com as mocinha, as boneca... Olhe, é muita resenha, muita esculhambaçao essa fada. Safada chega me deu um negócio. Era duma escritora chamada Hilda. Depois eu vi a foto dela noutro livro. Uma véa que vivia sozinha com uma ruma de cachorro. Igual a Tia Elisa, só que sem os cachorros.
Nos cadernos Tia Elisa ia de receita de bolo a poesia. Umas de dar tremor nas parte, sabe? Outras de doer o peito. E tinha uma parte que era de música. Escrito o nome "música" em letra de forma grande. Algumas com o nome dos cantores, outras com o nome de Elisa. Tia Elisa era ou num era cheia de surpresa? Já num me admira que um pedaço de chão de sua casa dê esse negócio na gente. Das músicas eu gostei mais de uma italiana². Eu sei porque a gente sabe que língua é mermo que num fale. Depois num sou ignorante não. Vivo aqui desse jeito porque essa é minha vida e pronto. E também era uma que a própria Tia Elisa gostava de cantar baixinho. Eu merma ouvi muitas vezes.

(Canta um pouco. Silêncio. Olhar perdido.)

Depois tem o jardim pra ajeitar. É pequeno, mas pode ficar arrumadinho. Vou plantar umas roseira e um pé de acerola.


Elisa em processo, por Ceronha Pontes.

Notas:
1- Filó, a fadinha lésbica- Hilda Hilst.
2- Senza Fine- Gino Paoli.


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Personagem


As criaturas ensinam muito do criador ao criador. Grata, faço o que for preciso para que este corpo seja a perfeita morada de Elisa.
Alexandre Cabanel contribui imensamente para o meu propósito.



sábado, 8 de fevereiro de 2014

Adeus a Mia Lil


Nesses dias em que me ausento, Mia, ainda que te traga em pensamentos, suspiros e soluços, mas sem correr o risco de cruzar com tua torturante figura, me obrigo a constatar, como havia já em outros tempos e não quero ter que provar novamente, que o desejo é coisa por demais e inquestionavelmente desarrazoada. Basta ver o meu estado. Inadmissível para um sujeito da minha envergadura. O desejo nos põe miúdos e risíveis.
Você brincou de amansar animal exótico e feroz. Quando pôs o bicho domesticado e aos teus pés, era hora de variar a caça. Na verdade esteve variando a caça por todo esse tempo, uma vez que não devias lealdade alguma a bicho tão arredio, não é mesmo? Justíssimo, querida. E há outras peles, minha criança, que exibidas sobre a tua, serão como o troféu que persegues e eu jamais poderia, porque os da minha raça são de pouco colorido e nenhuma serventia ao teu intento.
Agora cuspa no bicho grande e machucado, dê-lhe todos os pontapés que desejou enquanto este, posando de indomável, lhe contrariou com as mais diversas dificuldades. Você merece toda esta celebração, minha adorada. Festeje mesmo. Indigno sou eu, que despenquei dos anos meus, e do modo como os vivi, enfiando a cara na latrina, a um passo de abdicar de minha fortuna em função de tão volátil criatura.
Quando sei de você desfilando em companhia dos de sua natureza, penso, embora doendo, que está tudo certo. Meu lugar é este mesmo, fumando o meu cachimbo, esperando a sua falta tornar-se alimento de meu sarcasmo. Sou este urso cansado voltando pro habitat. Nos encontraremos pela selva, por certo, e saberemos dividir a mesma beira de rio onde matar a sede, civilizados e profissionais.
Quanto ao poeta se sua afeição, está laçado. Ainda não sabe, mas está laçado. Celebre isto também, você merece, tinhosa.
Adeus, pequena Mia Lil. Deixo uma canção cujo sentido o tempo, muito tempo (és tão jovem, Mia!), lhe dirá.

Frederick.

(Por Ceronha Pontes)


Para Úrsula, com amor sem fim.



Amada Úrsula,

Faz tempo não te escrevo ou telefono. Nossa amizade sempre necessitou de certa distância, concordas? Tamanhas são as nossas diferenças. No entanto, unidos em um amor acima de tudo o que acreditamos ou escolhemos. Apesar de incompatíveis na vida a dois, soubemos ser amor. No pouco tempo juntos, depois no luto da separação, depois pelos caminhos naturalmente distintos: amor.
Se por Azul-Monet adoeci, você só me trouxe saúde. Até quando foste embora com aquele trompetista, com o qual puseste ainda mais crianças neste inferno de mundo, te olhei com ternura e ficamos bem assim, você em Mercúrio, eu em Marte.
Queria escrever para Mia Lil. Dizer o quê? Qualquer manifestação minha e serei ainda mais risível que inconveniente. Não. Sou um porco ferido, mas, cheio de brios.
Ah, claro, Mia Lil é a garota a quem permiti fazer uma bagunça completa na minha vida. E como é próprio das "crianças", fugiu deixando a arrumação para o velho gagá que ora te quer o abraço, Úrsula. Talvez sentar contigo no quintal. Tu não abriste mão de viver numa casa com um belo quintal, espero. Qualquer conversa nossa, por mais diferente que pensássemos, era sempre reveladora. O tempo de um cigarrinho e um mundo novo se abria para cada um de nós. Te admiro a rara e aguda inteligência, e a falta completa de censura. Quanto fascínio, minha Úrsula!
Medo enorme de outra vez ter que admitir um rastro torto ferindo meu caminho. Pois quando penso em Mia Lil, me encho é de vergonha. Lutei bravamente contra o meu desejo. Tu bem sabes que não concordo em ser guiado pelo desejo. Mas ela se esgueira de modo que mesmo eu fui menos que um tolo, merecedor da rasteira que naturalmente se segue nesses casos. Jogo, troça, blefe. A gazela escapou me deixando com a venda nos olhos contando até quanto? Até quando? Que vexame, minha amiga louca, que vexame! Quando seus amigos me encontram e perguntam se estou bem, vejo em suas caras o regojizo de Mia, podendo enfim desdenhar de meu afeto. Eu que fui recusa enquanto tive forças. Cazuza foi quem adivinhou Mia Lil. Sabe a Bete Balanço? Pois é, "fantasiando em segredo o ponto onde quer chegar".
Meninas vão passando mesmo, não é? Aflitas por acessórios. Como pude? Quando o idiota aqui se rendeu, ela fez a volta e surgiu pendurada no pescoço de um poeta de minha estima, crês? Ela escreveu cartas de amor ao seu cachorrinho. Percebes os contornos de que é capaz? Você que não acha sabor em blefar, Úrsula, me diga, porque comigo?
De qualquer modo conhecemos já a ação do tempo. Não duvido de que vou sarar. Só queria que não fosse à custa de desamá-la, porque isso é mais triste que deixar de ser amado.Gostaria de olhar para trás e vê-la ao seu lado. E eu pudesse então amá-la como a ti. Mas creio, por toda a teia que ela construiu, que fará companhia a Azul-Monet.
Úrsula, quem te siga, te sabe inteiro o gingado. Tua dança é destituída de truques. Tu és, e pronto. Linda e livre Úrsula! Tê-la, do jeito mesmo que me coube, é privilégio imenso.

Todo o meu respeito e admiração.

Teu eterno e "complicado",
Frederick.

P.S.: Lembrança às crianças.

(Por Ceronha Pontes)


domingo, 2 de fevereiro de 2014

Coutinho


Interrompendo a série para lamentar a partida de Eduardo Coutinho. Absolutamente chocada!
Informações.


Resposta a Nikolaj


Meu amigo Nikolaj,

Me preocupo mais contigo neste momento. Então não podes vir comigo? Do que é que tu padeces e que te deixaria apoplético em me encontrar? Duvido muito seja algo da ordem do que me fustiga. Antes fosse. Saber-te emocionado seria motivo de bebedeira e cantoria nossa, subindo e descendo a serra, cidadezinha em cidadezinha, em busca de boteco merecedor de nossas ilustres e devastadas presenças.
Vejo que agonizar de paixão é  doce sofrimento diante de tua recusa, motivada por algo terrível e que não me deixas tratar. Sou o teu amigo, Nikolaj. Desde que nos conhecemos, cada vida que me coisa, você, comigo, me aguçando, adoçando, ou mesmo azedando o olhar. Permita-me.
Crês que eu nunca tenha me apaixonado por pequena alguma, e que tudo não passa de perversão? Talvez tenhas razão, mas, enquanto dói, sou capaz de jurar que não suportarei a ausência de Mia Lil. E prefiro alongar infinitamente esta dor, porque me apavora, sobretudo, a possibilidade de Mia Lil figurar, no futuro, ao lado de Azul-Monet. Mais triste que ser desprezado pela amada, é que ela se torne tão feia aos nossos olhos. Azul-Monet era de uma fraqueza tão perigosa! Capaz de atirar nas costas de quem fosse as suas culpas, condenando a outros pelos torpes atos seus. Tu não te importarias em parar na cadeia ou noticiários sensacionalistas por causa dela. Eu acabei em lugar muito pior. Aquele azul me amarga.
Mia Lil tem suas zonas obscuras e ardil próprio das pequenas. Um jogo de boca com o olhar que me deixa completamente vulnerável. Vejo todos os seus movimentos, o armamento que dispõe para a sedução de pobres diabos como eu, mas não resisti todo o tempo. É tinhosa, a bandidinha, não sossega enquanto não nos põe os arreios. Depois faz troça. Crês que ela agora diz que se afasta para me fortalecer? Oh, que alma piedosa! Se afasta porque cumpriu seu intento, venceu-me as resistências e cansou do brinquedo. Foi atrás de outro e promissor poeta. Meu ciúme quer mais é que ele despenque da sua condição de ser amado, e conheça a sarjeta onde ela é capaz de nos atirar. Ele pensa que está por cima, recusando os encantos de Mia. Não sabe ainda do que ela é capaz. Pobre homem. Pobres todos os homens!
Não, Mia Lil talvez seja mesmo só uma menina voluntariosa e cheia de caprichos. Não lhe pertencem a vileza e a canalhice de Azul-Monet. Falta-lhe talento para tanto. Assim é melhor pensar e então apreciar sua figurinha por toda vida. Quanta vontade de tê-la em meus braços, toda minha! Regozijar-me com o poder de fazê-la gozar como uma cadelinha indefesa e viciada. Indefeso estou eu, meu caro. E esta abstinência é torturante.
"Cíúme, bicho maroto do olho verde que inventaram pros velhos bilés ficarem assuntando barulhos nos telhados". Tens cada uma, meu amigo! Sempre tão razoável em seu deboche.
Veja só no que nos transformamos. Você recluso, abatido, incapaz. Eu, um bode velho exposto à zombaria das cabritas. E justo nós, "nós que estávamos lá, no descobrimento da foda!" (tu escreves, eu choro).
Chega de me maltratar com sua ausência, Nikolaj. Me preocupo por demais.
Aguardo ansioso o momento em que viajaremos juntos para nos inspirarmos mutuamente por mais uns quinhentos anos. Creio quando dizes que seremos nós, ao final. Mas até lá nos embriaguemos algumas vezes, amigo. Meu amigo. O único.

Um abraço deste "velho bruxo corrompido", conforme tuas próprias e sempre bem-vindas palavras,

Frederick.

P.S.: Manda me dizer a marca do teu fraldão. O meu acaba de vazar.

(Por Ceronha Pontes)